segunda-feira, 19 de março de 2012

Dossiê – Reforma Ortográfica


2012 chegou. Na virada, surgiu a dúvida: é um ano bem-vindo ou bem vindo? Melhor foi deixar a questão de lado e aproveitar o momento para desejar a todos um “Feliz Reforma Ortográfica!”, com muitos hífens, muitos acentos e, principalmente, muita memória para decorar as regras novas da língua. Este dossiê procura ajudar aqueles que resolveram passar o Reveillon com a ideia de deixar o Acordo Ortográfico para depois – mal sabendo que a “ideia” já segue a nova regra.

Despedida do trema
(Autor Anônimo)

Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüenta anos.
Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente tô fora. Fui expulso pra sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de  lingüistas grandiloqüentes!...
O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio... A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. O dois pontos disse que  sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé.  Até o cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final pra trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões. Será que se deixar um topete moicano posso me passar por aspas?... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K, o W – "Kkk" pra cá, "www" pra lá.
Até o jogo da velha, para o qual ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que, aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem. Vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas. E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!...
Nos vemos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história.

Adeus,
Trema.



Frases

Dica do dia: Nunca trema em cima da
linguiça.

 "Deveriam ter aproveitado a reforma
 ortográfica para substituir o
 chapeuzinho por algo mais moderno."
 (Luis Fernando Verissimo)

 “Estou me sentindo culpado. Nunca
 usei o trema. Desde que aprendi a
 escrever – sem piadas, por favor –,
 ignorei o trema.(...) Mas com a nova
 reforma ortográfica, o trema vai
 desaparecer. E eu fiquei com
 remorso.” (Luis Fernando Verissimo)

 “É preciso ter mais tolerância com a
 Reforma Ortográfica. Quando era
 pequeno, eu aprendi a reescrever a
 palavra ‘mãe’ diversas vezes – com ‘e’
 e com ‘i’ no final. Não tem
 importância, a mãe era a mesma.”
 (José Saramago)

 “Não me reconheci em algumas das
  razões que foram invocadas para
 chegar a este acordo (...)Mas não
 faço guerra (...) As nossas guerras
 são outras, é perceber porque é que
 nós, países de língua portuguesa como
 Portugal ou Moçambique, estamos tão
 distantes do Brasil. (Mia Couto)

In memoriam
(Ricardo Freire)

(...) O Brasil – de maneira unilateral – adotou a reforma ortográfica. Você provavelmente já se acostumou. Tudo o que na estreia parecia uma má ideia foi gradualmente absorvido. A falta de circunflexo em algumas palavrinhas já não lhe causa mais enjoo. E você já dorme tranquilo sem fazer questão daquele sinalzinho rastaquera, o trema. Aviões caíram, a nova gripe se alastrou, os escândalos do Senado não param de pipocar, Michael Jackson morreu – ninguém mais tem tempo ou paciência para discutir acento diferencial e regra do hífen. Só os muito conservadores, muito saudosistas e muito pentelhos ficam lamentando o fim do acento agudo no tritongo aberto.
Presente! Sim, eu sou um desses cricris que não se conformam e se vestem de preto e mandam rezar missa toda sexta-feira em memória do chapeuzinho de “voo”. E a rapidez com que todos os que estão à minha volta aceitam tudo isso só faz aumentar a minha depressão.
O que dói mais (com acento, felizmente) é o fato de todo esse quelelê (e aí? Pronuncia-se o “u” ou não?) ser absolutamente inútil.(...)
Enquanto isso, nós aceitamos sem nenhuma resistência que (...) o português escrito por aqui ganhe mais um verbo defectivo. Refiro-me ao verbo “parar”, que já não se pode mais conjugar em várias situações. Eu paro, nós paramos, eles param – mas a gente interrompe, você freia e ele dá uma paradinha.
Devia ser como o serviço militar, de onde você pode escapar alegando objeção de consciência. Se a Bahia pode ficar de fora do horário de verão, por que eu não posso ficar de fora do acordo? Estou montando um dossiê (...) quando escrever do jeito antigo der cana, vou pedir asilo ortográfico à França.
  
 

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